Mornas Escolhidas. Mornas de Sempre

Chissana M. Magalhães
7 min readDec 3, 2022

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É apelidada “música rainha di nos terra”. Talvez por ser um dos géneros mais antigos (atribuem-lhe uns 150 anos, pelo menos) e, sobretudo, por ser aquele que tem expressão em praticamente todas as ilhas de Cabo Verde. A Morna quer ser Património Cultural Imaterial da Humanidade e o dossier de candidatura, que terá começado a ser preparado desde meados de 2013, deve incluir as mais emblemáticas representantes do género.

Para assinalar o Dia Nacional da Cultura (apadrinhado por aquele que é um dos maiores compositores líricos do género), e enquanto o Dia da Morna proposto (por Vasco Martins) para 3 de Dezembro — aniversário de B. Léza — não é instituído, convidamos algumas personalidades a nos indicarem algumas das mornas que consideram referências incontornáveis do género, ou simplesmente aquelas da sua preferência. Com natural dificuldade em cingirem-se a um número tão limitado, Djoy Amado, Paulo Linhares, Gláucia Nogueira, Benvindo Neves e Lúcia Cardoso, lá avançaram as suas escolhas onde, sem surpresas, sobressaem nomes como Ildo Lobo, Paulino Vieira, Betú, B. Léza e Césaria Évora, entre outros. Depois da leitura, convidamos-vos a deleitarem-se a ouvi-las.

Djoy Amado

Músico e compositor

Eu escolhi, especificamente, estas versões de fixação (gravação) destas três composições, pelo facto das suas propostas de interpretação/execução vocal; dos arranjos; da execução instrumental e fixação (gravação), do meu personalíssimo ponto de vista, combinarem, agradavelmente, com a composição e o texto.

1. “Um Minute de Silence”

Compositor: Paulino Vieira

Álbum: Nha Primeiro Lar (Paulino Vieira,1996)

Intérprete vocal: Paulino Vieira

Comentário: É uma homenagem de Paulino ao seu pai, Sr. Santos Vieira. Só a abertura desta versão é já qualquer coisa…

2. “Nha Coraçon II”

Compositor: Betú

Álbum: Pensamento (Alcides Nascimento, 1997)

Intérprete vocal: Alcides Nascimento

Comentário: O Alcides Nascimento, filho do Bana, faz uma interpretação extraordinária desta composição do Betú, chamada de “Coraçon II”, parida nos meados dos anos 80. Um detalhe: Paulino esteve à frente dos arranjos. Não digo mais…

http://www.rtc.cv/index.php?paginas=13&id_cod=52245

3. “Um zibiu pa Abílio Duarte”

Compositor: Djinho Barbosa

Álbum: Trás di Son (Djinho Barbosa, 2006)

Interpretação vocal: Albertino Évora e Annie

Comentário: Esta canção leva-nos a uma outra dimensão, com o Djinho nos arranjos a lembrar-me, como ninguém, o Paulino nos seus tempos áureos. E o dueto Albertino Évora/Annie, então? Fantástico! Feliz homenagem a Abílio Duarte.

Paulo Lobo Linhares

Produtor e melómano

É muito difícil a eleição de 3 mornas…Contudo escolho 3, pelos motivos abaixo referidos, ficando de fora compositores como B.Leza com o enorme tema “Eclipse” , ou algumas de Manel D’Novas , ou a interpretação de Humbertona para a morna “Mulata”, entre outras

Ainda, e quase que em estilo de conclusão: sempre que falo, abordo ou toco na temática Morna — será imprescindível voltar a sublinhar o disco maior, a obra-prima que foi feita na música de Cabo Verde sobre a Morna — o inigualável “Nos Morna” de Ildo Lobo. O álbum todo seria como que a minha primeira morna. Um conjunto de mornas irmãs que, por causa deste disco, não podem ser isoladas.

1. “Força di Cretcheu”

Compositor (letra e música): Eugénio Tavares (…há quem defenda que a música foi criada por José Medina)

Álbum: “Humbertona ma Chico Serra” (Humbertona e Chico Serra, 1969)

Intérpretes Instrumentais: Humbertona e Chico Serra

Comentário: Pelos escritos, foi um dos nossos primeiros compositores de Mornas…e na verdade continua a ser o primeiro. Inevitável falar deste estilo musical, sem tocar no nome de Eugénio Tavares, o representante por excelência do Romantismo Cabo-verdiano.

“Força di cretcheu”, uma letra que define o (…ou um) amor de uma forma preciosa, (ainda por cima se pensarmos que foi um escritor que se “ fez autodidacta”). Um amor que vem de uma força maior, maior do que tudo, “maior qui mar e céu”, a ponto ser preferível a morte à perda deste amor. Porém, (e penso que na maioria dos temas de Tavares),eram amores pelos quais se lutava, se batia. Não são letras onde apenas se descreve o amor ou o sofrimento por perda deste…descreve-se o sofrimento da luta para não o perder. A melodia é impregnada de uma beleza suave e doce, embaladora e viciante. Uma das mais belas da nossa música.

2. “Nhô Santiago”

Compositor: Daniel Rendall

Álbum: “Djonsinho Cabral” (Os Tubarões, 1979)

Intérprete vocal: Ildo Lobo

Comentário: “Nhô Santiago” é um lamento de quem esteve fora e canta a ilha. Enquanto lamenta, a descrição do amor pela ilha é de um sentimento que creio, ser mais experimentado em quem esteve muito ligado á ilha. É fortemente, Santiago. Pelo que conheço, julgo que em relação à essa parte de cantar Santiago, foi dos primeiros temas, pois a maioria abordava Cabo Verde, ou em especial, Mindelo.

A melodia é simples mas forte e marcante. Penso que fará parte do início (talvez final da primeira década) da passagem da morna para formato de grupos com instrumentos eléctricos.

3. “Filosofia”

Compositor: Vasco Martins

Álbum: “Coraçon Leve” (Hermínia, 1998)

Intérprete Vocal: Hermínia

Comentário: Começo pela interpretação rainha deste tema — a de Hermínia. Conta-se que Vasco Martins fez o repertório deste disco para ser cantado pela Cesária Évora, mas que (quanto a mim) em boa hora foi parar à voz de Hermínia. Uma voz especial, única, apaixonante de uma quase sexagenária que cantou com a alegria radiosa de uma adolescente. A parte instrumental deve-se a direcção artística do mestre Vasco Martins. Assim,esta mistura torna este álbum em geral e, este tema em particular, numa perfeita raridade, que nos arrebata sem que nos apercebamos.

E o tema “Filosofia” também assim o é: uma linda melodia (bem expressa na versão instrumental de Bau), de um estilo de morna que cada vez se vai vendo menos: a morna-galope. Uma melodia simples mas profunda, e que não nos larga… torna-se constante e necessária, no que costumo chamar de “ bandas sonoras” da minha vida. Esta é com certeza uma delas. A letra aborda sentimentos e vivência(s) é de uma preciosidade rara… Uma descrição preciosa de um sentir em silêncio, quase que poderíamos dizer (que também ) de um “Coraçon Leve”.

https://www.youtube.com/watch?v=iB0lyqMh5J4

Gláucia Nogueira

Antropóloga e investigadora musical

Sobre as que eu chamaria “incontornáveis”, para mim são: “Força di Cretcheu” (Eugénio Tavares), “Lua nha Testemunha” (B.Léza), “Doce Guerra” (Antero Simas) e “Dez grãozinho di terra” (Jotamonte). Porque qualquer uma delas marcou de tal forma os cabo-verdianos que é difícil encontrar quem não as saiba cantar, quem não lhes conheça a letra. São composições que realmente falam à emoção das pessoas, é possível ver isso quando plateias inteiras se põem a cantá-las. Tornaram-se ícones não apenas da morna, mas da música cabo-verdiana de modo geral. A um compositor basta uma única música assim (quero dizer, com esse grau de adesão por parte do público) para entrar para a História. Mas eles além destas, ainda compuseram muitas outras, e ainda bem. As duas primeiras falam de uma emoção individual, romântica; as outras duas expressam um sentimento por Cabo Verde, mas em qualquer delas é de amor que se trata.

Agora, vou falar também das minhas preferidas, mas isto é algo absolutamente subjectivo e portanto não dá para dizer porquê, e não dá para dizer só três…

1. “Caminho di Djabraba”

Compositor: Nho Juloca Feijó

Álbum: ???

Intérprete vocal: João Alfredo (Fefé)

2. “Caminho de mar”

Compositor: desconhecido

Álbum: Nos Morna (Ildo Lobo, 1996)

Intérprete Vocal: Ildo Lobo

3. “Cusas di Coração”

Compositor: Betú

Álbum: Intelectual (Ildo Lobo, 2001)

Intérprete Vocal: — Ildo Lobo/ Intérprete Instrumental: Nho Nany

Benvindo Chantre Neves

Jornalista

Sou um grande apreciador da música cabo-verdiana, e neste particular, da Morna. Por isso, é uma tarefa complicadíssima para mim escolher as três melhores mornas de todos os tempos. Simplesmente não consigo fazer isso. Então, optarei por eleger três que me tocam de forma especial.

1. “Cai no Mar”

Compositor: Eugénio Tavares

Álbum: Sãozinha canta Eugénio Tavares (Sãozinha, 1995)

Intérprete vocal: Sãozinha Fonseca

Comentário: Para mim, é uma das canções românticas mais profundas que existe na nossa música. Uma lindíssima declaração de amor, que se torna ainda mais bela ao ser cantada pela Sãozinha Fonseca. Esta morna tem a particularidade de ser cantada em português.

2. “Um Minute de Silênce”

Compositor: Paulino Vieira

Álbum: Nha Primeiro Lar (Paulino Vieira, 1996)

Intérprete vocal: Paulino Vieira

Comentário: É das tais mornas eternas. Acredito que daqui a mil anos a canção ainda estará a passar nas rádios, sempre que uma pessoa morra (risos).

Para mim, essa morna arrepia qualquer ser humano minimamente sensível. Pela alma, pela forma tão bela como o filho homenageia e expressa gratidão ao pai. Mas, acima de tudo, pela beleza lírica da composição. Pela elegância e profundidade de cada verso. A beleza lírica do poema é notável! As estrofes todas rimadas (rima cruzada) são de uma densidade rara na nossa música. “Um minut de silence” é das tais música eternas.

3.“Direito de Nascê”

Compositor: Manuel de Novas

Álbum: Miss Perfumado (Cesária Évora, 1992)

Intérprete vocal: Cesária Évora

Comentário. É das composições que, quando uma pessoa se senta para analisar, normalmente exclama: «caramba, como é que o autor conseguiu «inventar» isso?» Tenho esta morna como uma das minhas preferidas sobretudo pela profundidade da sua mensagem. Costumo dizer que «Direito de nascê” é um verdadeiro tratado sobre paternidade/maternidade responsáveis. E o que torna a composição ainda mais linda é o facto de o autor recorrer ao feto e, usando-o como sujeito poético, dialogar com os pais, de dentro para fora, denotando uma criatividade invulgar do autor, como é, aliás, a marca de Manuel d’Novas. E, claro, a interpretação, os arranjos, são excepcionais.

Lúcia Cardoso

Cantora e professora de música

Escolhi as mornas que me tocam de alguma forma e que acho particularmente bonitas.

1. “Eclipse”

Compositor: B. Léza

Álbum: ???

Intérprete vocal: Bana

Comentário: Gosto desta morna mais antiga porque a melodia e harmonia talvez sejam das mais interessantes, e gosto do cenário imagético que ela me sugere.

2. “Torrão de Meu”

Compositor: Nhelas Spencer

Álbum: Bote, Broce e Linha (1990)

Intérprete vocal: Ildo Lobo

Comentário: Uma morna forte, letra e relevo melódico marcantes, gosto de a cantar, identifico-me muito com essa forma de cantar Cabo Verde.

3.“Notícia” / ”Dor de nh’Alma”

Compositor: ambas de Betú

Álbum: Intelectual (Ildo Lobo, 2001)/ Nos Morna (Ildo Lobo, 1996)

Intérprete: Ildo Lobo

Comentário: Completamente diferentes, uma mais clássica outra mais moderna a meu ver, mas muito tristes e fortes, além de lindíssimas musicalmente.

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Chissana M. Magalhães

Journalist/Writer in Cape Verde Islands. Reach me via chissana at gmail.com